Habitando em um terreno de oito hectares no Bairro Mário Quintana, na Zona Norte de Porto Alegre, mais de 700 famílias da ocupação Marcos Klassmann aguardam acordo entre lideranças e prefeitura pela compra do terreno e legalização sua comunidade habitacional.
Por Caroline A. Pinheiro da Costa.
Como quem fosse tocar no pensamento, Mara inclinou o corpo para baixo, e sentada em uma das três únicas cadeiras do lar, apoiou a mão direita sobre a testa. Perguntei: “cansada?”. E logo o soluço do choro veio acompanhado de uma confissão: “Tudo o que eu quero é que isso se resolva e eu possa ficar aqui na minha casa com a minha família”.
A angústia de Mara traduz um cenário que foi desenhado no dia 20 de agosto, quando uma reportagem veiculada no jornal Diário Gaúcho, indicou que a líder comunitária da ocupação Marcos Klassmann desviava dinheiro dos moradores para o tráfico de drogas. Esta comunidade, situada na zona norte de Porto Alegre – Bairro Mário Quintana, mais especificamente – recebe desde agosto uma série de indícios de que em breve será despejada. Brigas constantes, embates políticos e assassinatos estão entre as acusações que dificultam a legalização da comunidade na região.

Desde que a reportagem foi veiculada, a expressão de cansaço marca o rosto de Mara que, preocupada com o futuro incerto do seu lar, já não dorme direito há quase um mês. “Fico ouvindo o som de caminhões e patrulhas, como se a prefeitura fosse chegar a qualquer momento para tirar a gente daqui”, relata a mãe.
Mara Terezinha da Costa Machado, 51, divide o lar com o marido José Fernandes do Nascimento, 49, as duas filhas, Tayná e Fernanda Victória do Nascimento, 18 e 16, e a neta Isabelly Vedoy do Nascimento, 2. O filho Joimar dos Santos Nascimento, 22, também morador da Marcos Klasmann, foi quem demarcou o terreno para a mãe. Ele vive com a mulher e as duas filhas próximo dali. O filho Juliano Nascimento, 21, é o único que não vive na ocupação. Mora no Loteamento Timbaúva, ao lado da Marcos Klassmann, junto com a avó materna, para cuidá-la.
O desejo de permanecer na ocupação não é só da mãe. Juliano, Tayná e Fernanda confessam: “Queremos ficar aqui, aqui é nosso de verdade”. Apesar da vontade, para garantir o lar da mãe Mara, o filho Joimar articulou com os líderes da região uma moradia provisória para os pais e irmãos. Localizada no Loteamento Timbaúva, a nova casa é de cimento, tem banheiro e iluminação regulamentada. “A gente está pintando as paredes, e um pouco do dinheiro que eu tenho coloco lá. Mas eu faço isso somente para garantir, porque eu quero ficar aqui, onde é meu”, esclarece a mãe.
A casa em que a família vive é construída com compensados e tábuas de madeiras e se divide em dois pequenos quartos, uma cozinha e uma sala que liga as três peças. O terreno abrange um pequeno pátio na frente e é cercado, também, por paus de madeira. Se a ocupação for legalizada, Mara tem grandes planos para o lar. “Quero colocar tudo abaixo e fazer uma casa de concreto. Também vou fazer um quarto para cada filho, inclusive para o Juliano, para ele sair da vó e vir morar aqui comigo”, decreta olhando para o filho.
“Na nossa comunidade não tem vagabundo”
O barro no chão e compensados erguidos são comuns na região e visual quase padrão dentro da Marcos Klasmann. Todas as ruas – organizadas pelos líderes da ocupação na sua origem em 2012 – se vê o mesmo perfil de moradia. Em uma volta rápida por parte do terreno de oito hectares durante o dia se vê também muitos lares vazios, já que seus proprietários estão esse período trabalhando fora da região e retornam ao lar a partir do anoitecer.

Elisete Vargas da Conceição Silva é considerada uma das lideranças da ocupação e define a luta da comunidade como “um conjunto de famílias que não têm condições de pagar por moradias dignas habitando uma área totalmente esquecida dentro do Bairro Mário Quintana”. Há dois anos e meio, 70 famílias começaram a ocupar o território que, dois anos depois, soma histórias envolvendo assaltos, mortes, tráfico de drogas e documentações com assinaturas falsificadas – e está longe de um desfecho de sucesso.
O Loteamento Timbaúva I, II, III e IV, Recanto do Sabiá e Wenceslau Fontoura compõem parte do Bairro Mário Quintana. Essas ocupações, hoje legalizadas, servem de inspiração para as batalhas de Elisete. Para ela, a figura de grandes líderes nesses espaços garantiu a legalidade dos locais e trouxe segurança para as famílias. Segundo ela, que possui grande parte da família morando na Marcos Klassmann, “todos os grandes nomes de liderança lutaram pelas comunidades, e é o que estou fazendo”.
De acordo com Paulo Coelho, diretor do Centro Administrativo Regional Nordeste – uma espécie de sede da prefeitura na região – toda a Zona Nordeste de Porto Alegre, em especial o Bairro Mário Quintana, é marcado por trajetórias de invasões que incluem reassentamentos de outras partes da capital e a imigração de moradores do interior do estado em busca de emprego na cidade. “E como tal, o bairro não se preparou para receber essas pessoas. As pessoas foram chegando, foram se organizando como puderam”, salienta Paulo.
Paulo defende a ideia de que o estado deve intervir sim na lógica das ocupações – sendo mais enérgico tanto para evitá-las quanto para reassentá-las. Totalmente contra ocupações, o gestor do CAR Nordeste acredita “no poder e na legitimidade do estado”. Segundo ele, não há diferenciação entre as palavras ocupação e invasão. “Sendo público ou privado, entendo que os dois estão sendo invadidos. Ou seja, se torna uma questão semântica”, ressalta o advogado.

Elisete não tem ensino médio completo, mas garante que o estudo sobre a legislação e a articulação com importantes nomes da política são vantagens para conseguir a consolidação da Cooperativa que cria a fim de pagar o valor do terreno de acordo com o que for combinado com os antigos donos da terra. “Estudei bastante nosso processo, nós estamos totalmente dentro da lei e, inclusive, encontrei muitos erros pela parte deles no processo”, relata.
Eles, no caso, seriam Walter Zelmanovitz e seus outros seis irmãos que, donos legítimos da terra, pedem a propriedade de volta ou 3 milhões de reais pelo lote junto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Articulada, Elisete diz estar marcando constantemente reuniões para garantir a legitimidade da ocupação, negociando o valor das terras com os proprietários. “Acontece que, infelizmente, quem vai fazer alguma coisa não somos nós, mas sim quem tem o poder da caneta”, afirma.
“Se eu virar as costas, quem vai ajudar eles?”
A reportagem veiculada em 20 de agosto no jornal Diário Gaúcho foi um divisor de águas para o clima da ocupação. Mara lembra que antes da publicação, semanalmente, encontros repentinos reuniam todos da Marcos Klassmann para compartilhar avanços e definir novas estratégias de permanência. “Hoje em dia, ninguém mais vem nos chamar pra se reunir. A reportagem foi um baque pra nós”, lembra Mara.

No texto, a denúncia é de que uma quadrilha age na ocupação, ditando as regras do jogo e utilizando Elisete como porta-voz. Além disso, afirma que Elisete cobrava mensalidades de cada casa para o pagamento de um advogado que, há alguns meses, desistiu do caso. “Mesmo com o que saiu, eu acredito nela. Ela nos disse pra ficar tranquilo, que ninguém vai sair daqui e é isso que eu acho também”, afirma a mãe Mara. Elisete decreta: “Eu vou provar para todo mundo que o que está ali não é eu, não é a Elisete”.
Ciente do impacto que a mídia tem no processo judicial e na sua reputação perante a comunidade, Elisete logo se articulou com moradores e a imprensa. Um dia depois, uma passeata organizada com os moradores da Marcos Klassmann rendeu, além de protestos na Avenida Baltazar de Oliveira Garcia e em frente à redação do Diário e da Prefeitura Municipal, duas reportagens publicadas nos sites Sul21 e JornalismoB.
Elisete não mora na ocupação. Vive no Bairro Rubem Berta, há quatro quadras da Marcos Klasmann. Diz lutar não somente pela sua família que vive ali desde o início da ocupação mas por toda uma comunidade que não tem condições de morar em outro local. Neste ponto, Paulo Coelho, diretor do CAR Nordeste, levanta um questionamento que – segundo ele – ainda não foi respondido pela liderança: “Digamos que eles comprem o terreno ocupado com o dinheiro arrecadado na cooperativa, por que o apego com essa área? Esse local em específico?”. De acordo com Paulo, “com esse mesmo valor eles conseguem um terreno muito maior para realocar muito mais gente”.
“Vamos ter que lutar muito pra continuar aqui”
A história da Marcos Klassmann sempre esteve livre da presença de grileiros – corretores imobiliários das ocupações. A maioria das famílias que moram no local não possui condições de pagar nenhuma prestação. Assim como explica Elisete, “eles vão trabalhar de manhã cedo em obras, como catadores ou algum outro emprego que paga pouco”.
Mara é pensionista; Ela e o marido, que é servente de obras, sustentam a família. Ela garante que o salário não consegue sustentar outra moradia. Por isso, tem muito medo de sair. “Tu não dorme direito, não come direito. Tá sempre com aquilo na cabeça, de que vai chegar em casa e não vai ter mais nada”, desabafa. Com um histórico de outras quatro invasões, sua esperança é permanecer desta vez na Marcos Klasmann.

O relato e a rotina de Mara trazem a necessidade do questionamento que Elisete incansavelmente faz: qual direito vem antes? O da propriedade ou da moradia? A reunião que promete tentar responder esses questionamentos está marcada para a manhã de sexta-feira, 12/9, onde Elisete se encontrará com o Departamento Municipal de Habitação (Demhab). O que a comunidade espera, é que e a resposta venha — de preferência — antes da prefeitura remover as casas durante uma madrugada ou depois de Mara dormir uma noite, enfim, descansada.
Paulo Coelho, gestor do CAR Nordeste, no entanto, questiona este posicionamento que as comunidades de ocupações costumam tomar. “Se eu invado uma área privada eu sei que não vou ter saneamento, água, luz. Acontece que eles fazem e imediatamente depois obrigam o estado a cumprir com seu papel”, questiona. Ele sinaliza, inclusive, que “talvez 10% destas pessoas tenha a real necessidade desta moradia irregular. O restante saiu de uma invasão, já vendeu seu lote e está indo para uma nova invasão”.

Minha Casa, Minha Vida é o principal programa governamental que busca solucionar esta prática. Oferecido aos moradores da região, Elisete alega que o seu custo é muito mais alto do que os moradores podem pagar. “Nossa realidade é de famílias de papeleiros, pessoas que trabalham com reciclagem ou então carpinteiros. Ninguém tem condições de pagar nada além do seu alimento”, enfatiza a liderança.
A Comunidade Habitacional Marcos Klasmann é uma das vinte e cinco histórias de ocupações não legalizadas que atualmente esperam por decisão judicial em Porto Alegre. Com uma trajetória de muita incerteza, violência e contradição, o cenário atual projeta-se para a não legalização da ocupação – culminando no reassentamento destes moradores para outra zona da capital. Provavelmente será a quinta vez que Dona Mara, apesar de suplicar em protestos uma moradia, construirá um novo lar em um outro território.
Relato do repórter: A minha chegada à Marcos Klasmann
No inverno do Rio Grande do Sul, 17h30 já é quase noite. E foi nesse breu que eu me dispus a visitar pela primeira vez a Ocupação Marcos Klasmann Quem me levou até lá foi Juliano Machado, 21. Ele é educador de tecnologia e conclui o ensino médio em 2014. Quer divulgar softwares livres, ampliar barreiras econômicas e promover a justiça social. Como eu já o conhecia, tive tranquilidade em pedir para que ele me levasse para conhecer sua família.
Duas quadras do nosso ponto de encontro até a ocupação eram o necessário para eu entender um pouco da vida de Juliano e da história de sua família. Joimar, irmão de Juliano, estava por perto e nos viu. Logo disparou: “Eai,meu?, “O que tá fazendo aqui?”, “quem é ela?”, perguntou rapidamente.
Encurralado em uma região com maior nível de criminalidade e mais baixo IDH de Porto Alegre, conseguiu espaço para realocar sua família no Bairro Mário Quintana. Na verdade, foi uma forma de agradecer a família que já havia se mudado duas vezes para proteger à todos dos riscos que Joimar os colocava. Juntos, os três, fomos até a casa de Mara, mãe de Juliano e Joimar, onde não havia ninguém.
Uma pequena garoa fria começou a cair, decidimos mudar o rumo e procurar a mãe Mara pelo bairro. Em uma das principais ruas do Loteamento Timbaúva, Joimar articulou uma casa para a família – caso a Marcos Klasmann fosse desapropriada. Lá estava Mara, o marido, uma filha e a neta. A casa escura, de três peças, abrigava muita gente totalmente desconhecida para mim. Ao chegar na porta, não sabia se entrava ou se esperava ali mesmo. Entrei.
Comecei a entrevista num dos cômodos da casa que, naquela tarde, havia sido pintado por Mara. Logo na terceira resposta já pedi: “Vamos para sua casa na Marcos Klasmann?”. Sorte minha, ela disse que sim. Fomos toda a família de “Lalau”, como é chamado o ônibus comunitário e gratuito A62 – Alimentadora Wenceslau Fontoura que circula nos loteamentos e ocupações do Bairro Mário Quintana.
Dois minutos em pé no ônibus e voltamos ao ponto de partida da entrevista. Local que, aparentemente não precisaria sair naquele fim de tarde para conhecer a história mas que, se não tivesse saído, não conheceria tanto das peculiaridades dessa família.
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